A negociação de terrenos pertencentes ao Estado. O “caso Bala” e outras questões mais profundas.


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Direito de Propriedade e os bens de domínio público

A questão da construção na orla costeira e o problema crónico das terras do Estado está na ribalta em STP porque estão a crescer desenfreadamente as construções ao longo das praias ou mesmo nas próprias praias, vedando o acesso às mesmas. 


O mais recente é o chamado caso “Bala”. A história do cidadão comum que fez um negócio tido “lícito e legitimado” e que agora não pode usar o que é seu de direito. Vou tentar clarificar algumas figuras jurídicas para ajudar o leitor das notícias a entender melhor o que está em jogo e também traçar algumas sugestões a ter em conta pelo Governo.


O Direito Administrativo é um ramo do Direito Público que se dedica às relações da Administração com os particulares. Diz-se Direito Público porque na maioria das vezes o Estado (e as demais entidades do poder público) actuam exercendo poderes de autoriadade, por um lado e também devido à natureza dos bens envolvidos nas relações jus-adminstrativas. Os princípios e regras do Direito Público são na sua maioria totalmente distintos do Direito Privado. As entidades públicas estão sujeitas tanto ao Direito Público como ao Direito Privado e devem reger-se pelas suas regras.


Quer isso dizer, por outras palavras, que o Estado pode criar uma empresa pública por decreto ou pode criar uma sociedade anónima, tal como uma cidadão comum faz. Da mesma forma, o Estado, as autarquias, os institutos públicos e as empresas públicas têm bens e podem dispor deles através da venda ou adquirir outros pela compra. Mas as relações de compra e venda em que essas pessoas colectivas públicas intervêm exigem procedimentos específicos previstos em regras de Direito Administrativo ( Direito Público). Assim compreende-se a razão pela qual se exigem concursos públicos para aquisição e alienação de bens pertencentes aos entes públicos. Só assim é que será garantida a transparência e a economicidade desses actos. São essas e outras regras que devem ser objecto da fiscalização pelo Tribunal de Contas.



Pelo que acabamos de dizer, intuí-se que deveriam existir regras sobre a alienação de bens públicos. Infelizmente a legislação são-tomense actual não é totalmente clara nessa matéria e dá azo a inúmeras inconsistências e por vezes esquemas. O caso dos terrenos é o mais grave de todos. Vamos analisar porquê.


Para entender porque vou traçar a diferença entre dois tipos de bens, os bens do domínio público e bens do domínio privado. Os bens de domínio público são bens que são por natureza bens comuns de uma determinada comunidade e por isso insusceptíveis de apropriação privada. É o caso das estradas, das pontes, dos rios, ribeiras, das praias, fundos marinhos, o subsolo marinho e outros que escapam à memória. Qualquer pessoa com mínimo juízo percebe que da mesma maneira que não se pode comprar uma estrada também não se pode comprar uma praia. As Razões são obvias mas por vezes alguém tem de olhar pelo seu bico. Esse é o papel do Estado.


Os bens do domínio privado são bens similares aos bens privados, com diferença de pertencerem ao Estado. Incluem-se nesse conjunto os edifícios públicos e respectivos terrenos, as antigas roças e seus terrenos e casas, na parte em que não compuserem bens do domínio público e património cultural nacional, os veículos, computadores e outras máquinas e utensílios públicos. 


Alguns bens de domínio público podem deixar de o ser se houver desafectação - processo pelo qualquer se dá a transferência de um domínio para o outro. Mas essa desafectação depende sempre da natureza do bem, tendo em conta que há bens que não são em caso algum. É o caso do direito sobre os recursos minerais do subsolo ou das praias e estradas quando comparadas com os quartéis e mercados.  



Em STP vigora ainda o Regulamento das Capitanias  de 1958. O referido diploma regula a organização da Capitania dos Portos das Colonias Portuguesas. Felizmente, esse regulamento está em processo de revisão. Ao que conheço do mesmo, não contém disposições claras sobre a autorização da a Capitania dos Portos emite a favor do particular para uso do bem de domínio público sob a sua jurisdição, a praia. Numa leitura superficial do caso, a Capitania Concede uma autorização da uso privativo do bem de domínio público e isso não pode ser confundido com o direito de propriedade.


O direito de propriedade é um direito real (regulado pelo direito privado). É o direito que uma pessoa exerce sobre uma coisa. Dito de outro modo, direito que alguém exerce sobre algo que é seu. Isso implica previamente que a coisa se susceptível de apropriação. Se a coisa não está no domínio privado ela não pode ser nem vendida nem comprada pelo Estado muito menos por um particular. Aplicam-se outras regras do direito público mas não a propriedade.


Quer isso dizer, para quem entende PORTUGUÊS que o contrato que o Sr. Bala fez com os pescadores não é um contrato válido perante as autoridades são-tomenses. Aliás não deverá ser válido em nenhum país e perante nenhum tribunal sério e que se funde no respeito pelo Direito. A alegação de que existe uma autorização da Capitania é perfeitamente legítima mas não colhe tendo em conta que a respectiva autorização não é apta a transferir a propriedade. É uma confusão que muitas pessoas têm feito nas nossas paragens.



O outro lado da questão


O Sr. “Bala” tentou fazer um negócio que por muito está a ser condenado mas é uma pretensão legítima e esperada. É esperada pelo facto de sermos uma ilha bem localizada e estarmos a ser alvo de intensa pressão imobiliária, principalmente no litoral. Cada dia que passa há mais estrangeiros e nacionais a querer construir em STP mas que não encontram terra disponível para comprar. Há terrenos mas não há como comprar. A confusão é bastante grande porque pela lei não se podem vender terrenos do Estado mas o Estado tem entre 70% a 90% da terra. É Assim que surgem pessoas que se aproveitam da fragilidade das instituições do Estado optando por esquemas menos claros.


Portanto, o nosso país ainda não descobriu as vantagens que existem na venda dos terrenos que dispõem e optou por uma cultura de distribuição gratuita e uma anarquia que dá azo a esses problemas que por vezes assumem proporções cancerígenas. Estamos até hoje a tentar evitar o inevitável com a política errada. Pretendemos evitar que os estrangeiros comprem terras mas “eles” hoje possuem mais terras que não lhes custaram quase nada a adquirir. Os dois ou cinco milhões do título de posse ou mesmo os dez mil euros que se falam no caso nada têm a ver com os verdadeiros preços finais dos terrenos e das casas do Estado. É tempo para mudar.




Como mudar? Sugestões para uma nova política.


As soluções devem significar um corte radical com o passado, mudar definitivamente todas as fontes de incoerências e imprecisões, tendo sempre em vista o equilíbrio ambiental e a salvaguarda das gerações futuras. As medidas são as seguintes.


  1. Criar uma nova classificação dos terrenos do Estado
  2. Envolver as autarquias e Região Autónoma do Príncipe
  3. Revogar o princípio da distribuição gratuita ou de “preço extremamente baixo”


I.  A primeira medida tem a ver com políticas que já estão em curso como a inventariação do património do Estado e a inclusão no respectivo inventário da natureza jurídica do bem. Assim, mesmo que os pescadores venderem todas as praias ninguém poderá invocar a propriedade da mesma porque ela está cadastrada como praia - bem de domínio público do Estado. Também está em processo de aprovação uma nova legislação sobre a alienação de bens que prevê o concurso público e a regra do preço mais elevado. (discutiremos isso mais tarde)


Nesta mesma linha, também deverá ser tomada em consideração que a classificação implicará algumas mudanças substanciais. Por exemplo, alguns edifícios das roças deviam ser incluídos no património cultural em ordem a evitar a tentação de alienação pelo Governo. (vide Lei do Património Cultural)


O novo regulamento da Capitania dos Portos ou a legislação complementar deverá estatuir que a área sob jurisdição militar deve se manter mas deveria adoptar um novo limite para o domínio público marítimo costeiro. Explicando de uma forma simples. A s nossas ilhas são bastante pequenas, se for considerado como domínio público toda a extensão de terra em oitenta metros (80m) a contar da linha da preia mar (maré cheia) teríamos um território bastante reduzido. A consequência imediata seria que a terra disponível para os privados edificarem na zona costeira praticamente não existiria e isso não é de esperar de um país que pretende fomentar o turismo e as habitações turísticas.



A classificação referida acima poderá implicar também a criação de reservas de terrenos  que não poderão ser vendidos ou usados por privados, como é o caso das actuais reservas do Obô e imposição lega de guardar acesso às praias. As pessoas poderiam construir na zona costeira mas nunca ter a pretensão de privatizar as praias.


Para fechar este ponto, há a questão da legalização dos terrenos privados. O Governo deve fazer um esforço para melhorar a capacidade do registo predial. Caso contrário haverá muitos litígios por causa da propriedade dos terrenos. As pessoas têm usado declarações de venda particulares para transferir bens que só podem ser vendidos por escritura pública. Note-se que ninguém falou em escritura pública no caso “Bala”. A escritura pública e o registo são a única garantia da propriedade imobiliária.


II. O nosso país deve ser um dos poucos que decidiu criar autarquias locais mas acredita que elas não têm direito a bens próprios. Acho que devemos encarar o problema da falta de meios das autarquias locais também nesta perspectiva. Sem meios materiais também não há política. Alguns terrenos que hoje são do Estado deviam ser transferidos para o património das autarquias locais. Assim eles teriam espaços para os seus serviços e também terrenos para a construção de infra-estruturas e casas sociais. O caso das autarquias também vale para o Instituto da Habitação e Imobiliária.


III. Depois de se determinar quais são os bens e de fazer uma efectiva classificação dos mesmos é importante definir quem tem a jurisdição os mesmos. No caso dos bens do Estado,  hoje em dia há uma separação sectorial. As praias estão sob a jurisdição da Capitania dos Portos, os terrenos urbanos e a generalidade dos terrenos, com o CADASTRO, ou Direcção dos Serviços Geográficos e Cadastrais e por fim os terrenos agrícolas, das antigas Roças que estão sob a jurisdição da Direcção da Reforma Fundiária - Ministério da Agricultura. O Cadastro faz parte do Ministério das Obras Públicas e a Capitania dos Portos é uma parte da Guarda Costeira - Ministério da Defesa Nacional.


Neste ponto nada mais justo que revogar os poderes destas instituições públicas em matéria de distribuição de terras. Se quisermos mudar alguma coisa e acabarmos com as dores de cabeça dos ministros devemos eliminar essa prerrogativa e adoptar uma nova política. 


Essa nova política não vai acabar com os poderes de policiamento e protecção da Capitania. Por outro lado, não prejudicará a função da Capitania dos Portos atribuir o direito de uso privativo do bem de domínio público para fins turísticos.


Quanto ao Cadastro, teríamos a vantagem de ter uma verdadeira instituição de planeamento Urbano em STP. A Direcção dos Serviços Geográficos pode assumir a missão nobre de planear todo o território do país e fornecer ao Governo ferramentas para actuar nessa matéria. Por outro lado, também seria a instituição chave no registo e inventario do património do Estado e talvez no próprio registo das terras privadas.


A função de distrituição de terrenos urbanos para construção seria susbstituída por dois mecanismos, os loteamentos privados e os loteamentos públicos. Os loteamentos seriam zonas preparadas com infra-estruturas adequadas (redes de água, electricidade e outras) que seriam posteriormente vendidos a preços de mercado. Poderia ser instituída também nos loteamentos públicos o regime da venda por preços controlados e o arrendamento de casas e terrenos sociais aos cidadãos mais desfavorecidos. Não pode ser dada preferencias prioridade em caso algum aos funcionários públicos. Sendo possível o acesso a condições de financiamento específicas. As instituições públicas que passariam a ser responsáveis por essas tarefas seriam as autarquias e o Instituto da Habitação.


No final, se for essa a opção do Governo e se houver coragem política para implementar essas mudanças, o cenário poderia mudar radicalmente.


É esta a minha reflexão.


NOTA IMPORTANTE: se ficou ofendido, inconformado ou indignado com qualquer coisa que aqui foi dita LEIA POR FAVOR O DISCLAIMER 


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Comentários

  1. Kelve Nobre de Crvalho9 de junho de 2009 às 00:41

    Concordo perfeitamente com a abordagem juridico-tecnica que fizeste da questão, e creio que o caminho que doutamente apontas para solucionar o problema da Rés publica nomeadamente o das terras em S.tomé e o melhor que se deve se seguir de momento antes que outros problemas mais sérios dai derivem.

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  2. Obrigado pelo comentário, Dr. Kelve de Carvalho. Continua a vir passa a palavra. Bom Trabalho! Chinhô

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